19 de agosto de 2010

A HERANÇA*

* Texto de Arthur Xexeo para O Globo

Tenho muito carinho pelo meu telefone fixo. E isso desde os tempos em que ele não era chamado de telefone fixo, mas apenas de telefone. Embora eu perceba que ele não seja lá tão fixo assim, já que circula com desenvoltura pela casa toda. Mas, como a base é fixa, talvez o nome seja mesmo adequado.
Meu pai não foi homem de muitas posses. Sempre viveu com o ordenado que recebia mensalmente e do qual nunca sobrou muita coisa — geralmente, faltava —e, consequentemente, nunca comprou, com raras exceções, nada que pudesse ficar, por exemplo, como herança. Entre as exceções, havia um telefone. Ou, para ser mais preciso, uma linha de telefone. Ele tinha plena consciência de que aquele era um de seus bens mais preciosos. Valorizado, com tendência a se valorizar sempre mais, o telefone ficou para mim como sua herança. Na verdade, para não haver briga pela posse do telefone depois de sua morte, meu pai me deu em vida a linha tão cobiçada. Era isso que eu queria dizer. Ganhei de herança do meu pai um telefone. E é por isso que sou tão apegado a ele até hoje, apesar de, atualmente, ele não valer mais do que alguns tostões.

De início, me apeguei ao aparelho em si. Era vermelho, moderníssimo. Mas me rendi ao desenvolvimento da tecnologia, e ele foi substituído por um desses com base fixa e fone livre. Transferi meu apego, então, para o número, um daqueles antigos de seis algarismos. Era o número do meu pai. Foi um choque quando, contra a minha vontade, sem que eu fosse consultado, acrescentaram um 2 na frente. Por fim, também à revelia, à sorrelfa, foram trocados os três primeiros algarismos por quatro outros completamente diferentes. O número do meu telefone atualmente não significa nada para mim. Nem parece o mesmo telefone que meu pai me deixou. Só me restou apegar-me à linha, o mais abstrato dos componentes de um telefone.

E é essa linha que eu vejo agora vivendo seus últimos dias. De pouco me serve aquele telefone fixo. Amigos, colegas, parentes, propostas de trabalho, chateações de telemarketing — tudo chega a mim pelo telefone celular, que também recebe torpedos, bate fotografias, me liga à internet, exibe páginas de um livro de Machado de Assis, transmite programas de rádio e televisão, faz traduções diretas do português para o grego... O telefone que meu pai me deixou de herança, há mais ou menos duas décadas, é tão inadequado aos dias de hoje quanto uma escarradeira no canto da sala.

Cada vez que olho para meu telefone, sinto que ele está se tornando tão obsoleto quanto um aparelho de fax, um gravador de rolo ou um videocassete. Ele parece estar começando a cumprir seu destino inexorável de juntar-se num esconderijo qualquer lá de casa às fitas VHS e aos discos de vinil dos quais teimo em não me livrar. E fico triste. Tenho a impressão de que, quanto mais meu telefone se torna inútil, mais me afasto de meu pai.

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